Por Marcello Gadelha
Ultimamente o excesso de disputas no campo do judiciário vem gerando tensões nesta arena, na qual o processo de judicializar tudo aquilo que o poder legislativo e o poder executivo não conseguem resolver, tem permitido um protagonismo do Poder Judiciário e da Corte Constitucional no Brasil, leia-se STF.
É de ser relevado, inevitavelmente, que esse protagonismo vem gerando críticas e aplausos dos mais diversos segmentos da sociedade, pela presença ativa dos julgadores e julgados na política brasileira.
O Ministro Luís Roberto Barroso, em artigo publicado, define bem o contexto do que poderia se entender por este termo: “Judicialização significa que algumas questões de larga repercussão política ou social estão sendo decididas por órgãos do Poder Judiciário, e não pelas instâncias políticas tradicionais: o Congresso Nacional e o Poder Executivo – em cujo âmbito se encontra o Presidente da República, seus ministérios e a administração pública em geral. Como intuitivo, a judicialização envolve uma transferência de poder para juízes e tribunais, com alterações significativas na linguagem, na argumentação e no modo de participação da sociedade. O fenômeno tem causas múltiplas. Algumas delas expressam uma tendência mundial; outras estão diretamente relacionadas ao modelo institucional brasileiro.” (BARROSO, Judicialização, Ativismo Judicial e Legitimidade Democrática, pag. 03).
Vê-se que o nosso modelo constitucional brasileiro, apesar de prever estratégias de autocontenção, hodiernamente também permite que o ativismo venha dando sobressaltos, no sentido de preencher um vácuo de legitimidade dos demais poderes, fruto de um processo de deterioração representativa que vem se acumulando durante anos após o processo de redemocratização da política brasileira.
Aqui vale um registro: o poder emanado pelo povo aos seus representantes legalmente eleitos é algo incontestável, e talvez seja a maior demonstração do exercício de poder de forma delegada. Podemos até falar no sentido figurativo que se deslumbra, que possa ser o ápice do exercício do poder político numa democracia.
Posta assim a questão, é de se dizer que o ativismo judicial no Brasil assume uma certa particularidade, diante de algumas circunstâncias que poderíamos elencar como molas propulsoras para que esse ativismo pudesse prosperar. O Ministro Barroso elenca três grandes causas que contribuem para esse processo de judicialização.
A primeira consiste no processo de redemocratização, após o período ditatorial em que o ponto alto foi justamente a promulgação da Constituição de 1988, em que surge uma busca incessante pelas garantias dos direitos.
O segundo fator determinante teria sido a Constitucionalização Abrangente, em que enumerou inúmeras matérias transformando política em direito, como afirma o Ministro Luís Roberto Barroso em artigo publicado.
Cumpre-nos assinalar que toda essa abrangência material da Constituição faz dela um verdadeiro instrumento de judicialização, devido principalmente ao seu caráter de Constituição-Dirigente. Segundo ensinamento de Guilherme Peña de Moraes, a Constituição-Dirigente seria aquela que legitima e limita o poder do Estado em face da sociedade, bem como define suas finalidades do exercício do poder político para o futuro, mediante a instituição de normas constitucionais programáticas. (MORAES, Curso de Direito Constitucional, pag. 80).
A terceira e última causa da judicialização seria o sistema brasileiro de controle de constitucionalidade, sendo um dos mais abrangentes do mundo, conforme elenca o Ministro Luís Roberto Barroso. Na verdade, o sistema adotado pelo Brasil de controle de constitucionalidade seria híbrido, pois adotou características do sistema americano de controle incidental e difuso, de modo que qualquer juiz ou tribunal pode deixar de aplicar alguma lei por entender ser inconstitucional. De outro lado, o sistema europeu de controle direto adotado pelo Brasil permite que demandas que infringem determinadas matérias constitucionais possam ser levadas diretamente ao Supremo Tribunal Federal, de modo que este Tribunal tenha que se debruçar sobre as mais diversas matérias que chegam ao seu alcance.
Neste compasso, como diferenciar o que seria judicialização e ativismo judicial? Na realidade, há uma linha muito tênue que os separam. Por outro lado, seus contornos em muitos casos se sobrepõem ou se igualam, sendo difícil tal diferenciação, sobretudo quando se entra no campo hipotético da interpretação da Constituição.
Oscar Valente Cardoso, ao definir o ativismo judicial (ou a judicialização política), conceitua o que pode ser resumido na atitude dos juízes de interpretar as normas jurídicas sem se limitar às restrições formais e objetivas, e levando em conta que a aplicação das leis é variável no tempo e em cada caso concreto. Isso pode causar a extensão de direitos não expressamente previstos em lei ou na Constituição, motivo pelo qual se afirma que essa postura judicial importa na “criação” de direitos, a partir de uma interpretação ampliativa de normas escritas, ou com fundamento em princípios jurídicos genéricos (igualdade, razoabilidade, dignidade da pessoa humana, etc.) (CARDOSO, 2011).
Oportuno se torna dizer que o ativismo judicial confere ao juiz, ao se debruçar sobre determinada matéria, justamente a possibilidade de transpor a letra fria da lei no sentido de impor sua visão sistêmica e com isso incorrer no processo de inovação, ou seja, criando novos direitos não previstos no ordenamento jurídico.
Algo pertinente a ser considerado em relação ao ativismo judicial é justamente até onde vão os limites desse processo inovador da judicialização da política. Ou seja, quais limites perquirir. Se é que existem limites no que se refere à autonomia desse poder de interpretar o texto normativo. Pergunta-se em que momento se pode considerar que um poder está usurpando a finalidade do outro.
Em artigo publicado por Eros Grau, ex-Ministro do STF, pondera-se de forma muita clara o papel do juiz ao aplicar a lei preceituando o seguinte: “Não é necessário frequentarmos faculdades de Direito para nos darmos conta de que quem faz as leis é o Legislativo e quem as aplica são os juízes. Em nosso tempo — hoje, aqui, agora —, o legal e o justo (Direito e justiça) não se superpõem. Fazer e aplicar as leis (lex) e fazer justiça (jus) não se confundem. O Direito é um instrumento de harmonização/dominação social, e a justiça não existe por aqui, só floresce no Paraíso!”
Há uma distinção, fundamental, entre a dimensão legislativa e a dimensão normativa do Direito. Texto e norma não se identificam. A norma jurídica é produzida pelos juízes ao interpretarem textos de lei, resulta da interpretação!
Mais, interpretação e aplicação não se realizam autonomamente: o intérprete discerne o sentido do texto a partir e em virtude de um determinado caso, de sorte que a interpretação consiste em tornar concreta a lei em cada caso, isto é, na sua aplicação.
Eis, pois, a regra: a decisão jurídica correta a ser tomada em cada caso há de ser aquela que o juiz entende, em sua consciência, que deve (e não que pode) tomar. O grave está em que cada caso comporta mais de uma solução correta, nenhuma exata.
Em última análise, como se depreende, o ativismo judicial e a judicialização caminham juntos, mas nem sempre fazem parte da mesma pisada. Metaforicamente, podemos afirmar que o ativismo judicial se sobressai como uma espécie de descompasso, em que o operador do direito ao aplicar sua interpretação ao texto cria uma norma jurídica muitas vezes ao arrepio do entendimento justo. Assim, o correto deixa de ser exato, ao sabor do juízo de valor de quem tem o poder de aplicar a lei ao caso concreto.
Marcello Mota Gadelha
Advogado, professor universitário e colunista do blog. Escreve as quintas-feiras sobre Direito Constitucional