Gravações apontam envolvimento do presidente em rachadinha

Gravações apontam um suposto envolvimento direto do presidente da República, Jair Bolsonaro, no esquema ilegal de entrega de salários de assessores entre os anos de 1991 e 2018, época em que ele exerceu os mandatos de deputado federal. O governo nega que o esquema tenha existido.

Os áudios obtidos pelo UOL revelam o que era dito no círculo familiar do presidente. Declarações indicam que Bolsonaro participava diretamente da rachadinha, nome popular usado para o crime de peculato, que configura mau uso do dinheiro público. Segundo as gravações, Bolsonaro teria demitido um familiar porque ele não devolvia a quantia combinada do salário.

Andrea Siqueira Valle, irmã de Ana Cristina Valle, segunda mulher de Bolsonaro, afirma que seu irmão, André Siqueira Valle, foi demitido por decisão do presidente porque ele se recusou a devolver a maior parte do salário como assessor.

“O André deu muito problema porque ele nunca devolveu o dinheiro certo que tinha que ser devolvido, entendeu? Tinha que devolver R$ 6.000, ele devolvia R$ 2.000, R$ 3.000. Foi um tempão assim até que o Jair pegou e falou: ‘Chega. Pode tirar ele porque ele nunca me devolve o dinheiro certo’, declarou.

André tinha sido contratado em novembro de 2006 e foi demitido em outubro de 2007 do gabinete de Bolsonaro na Câmara dos Deputados. Antes disso, André trabalhou de agosto de 2001 a fevereiro de 2005 e de fevereiro de 2006 a novembro do mesmo ano no gabinete do vereador Carlos Bolsonaro (Republicanos-RJ).

Andrea também trabalhou para Bolsonaro durante anos, setembro de 1998 a novembro de 2006. Trocou de lugar com seu irmão em 2006. Ele foi para o gabinete de Bolsonaro e ela, para o de Carlos, onde ficou até 2008. Após isso, foi nomeada no gabinete do então deputado Flávio Bolsonaro (Patriota-RJ), onde ficou até 2018. Ela não se respondeu as tentativas de contato.

Ana Cristina Valle e sua família não quiseram se pronunciar.

O advogado que representa o presidente, Frederick Wassef negou o esquema no gabinete e disse que existe uma antecipação da campanha de 2022. Segundo ele, Bolsonaro “é vitima de calúnias e fraudes” para atingir a reputação do presidente. “Estão requentando a velha mentira de rachadinha que não conseguiram provar até hoje com áudio clandestino editado e fraudulento sobre fatos inexistentes de mais de 14 anos atrás. Jamais existiu qualquer esquema no gabinete do então deputado federal Jair M. Bolsonaro“, disse Wassef.

Andrea também indica o envolvimento do coronel da reserva do Exército, Guilherme dos Santos Hudson. Segundo os áudios, Hudson, que é tio de Andrea, é quem a levava ao banco para sacar o dinheiro do salário todos os meses. “O tio Hudson também já tirou o corpo fora, porque quem pegava a bolada era ele. Quem me levava e buscava no banco era ele”, diz ela.

No período como assessora de Flávio, segundo o Ministério Público, Andrea teria recebido R$ 674,9 mil. Do total, ela sacou R$ 663,6 mil.

A ex-cunhada do presidente também afirma que estava sendo silenciada. “Não é pouca coisa que eu sei não. É muita coisa que eu posso ferrar a vida do Flávio, ferrar a vida do Jair, posso ferrar a vida da Cristina. Entendeu? É por isso que eles têm medo aí e manda eu ficar quietinha. Não sei o que, tal. Entendeu? É esse negócio aí.

Em defesa do senador Flávio Bolsonaro, os advogados afirmaram que não poderiam comentar o suposto áudio. “Gravações clandestinas, feitas sem autorização da Justiça e nas quais é impossível identificar os interlocutores não é um expediente compatível com democracias saudáveis”, disseram.

A defesa de Ana Cristina, que também atua na defesa de toda a família e do coronel Hudson, preferiu não se pronunciar.

UOL também teve acesso à íntegra dos áudios da investigação do MP-RJ (Ministério Público do Rio de Janeiro) sobre o suposto esquema de rachadinhas no gabinete de Flávio Bolsonaro. Nelas, Márcia Aguiar e Nathália Queiroz, mulher e filha de Fabrício Queiroz , se referem ao presidente Jair Bolsonaro como “01”.

A conversa ocorreu em outubro de 2019. Na época, tinha sido noticiado que apesar das investigações Queiroz negociava 500 cargos no Congresso Nacional. Nathália reclamava que o pai continuava envolvido na política e Márcia concordou com ela. “É chato também, concordo. É que ainda não caiu a ficha dele [Queiroz] que agora voltar para a política, voltar para o que ele fazia, esquece. Bota anos para ele voltar. Até porque o 01, o Jair, não vai deixar. Tá entendendo? Não pelo Flávio, mas enfim não caiu essa ficha não. Fazer o quê? Eu tenho que estar do lado dele”, declarou.

Márcia comparou a situação com a de um preso que continuava dando ordens de dentro da prisão. Nathália reclamou do pai: “Não consigo ter pena mais. Antes eu tinha. Agora não consigo, porque isso daí é toda hora que eu vejo, é ele falando de política, é ele falando negócio de vaga, é não sei mais o quê”.

O fato de Márcia se referir a Bolsonaro como 01 nas mensagens surpreende porque o entendimento era que o 01 seria Flávio. O presidente chama publicamente os seus filhos pela ordem de nascimento, do 01 ao 04.

UOL procurou a defesa de Márcia, mas não obteve respostas.

Investigações do MP

O MP-RJ investiga Andrea e André Siqueira Valle e Ana Cristina e Carlos Bolsonaro pela suspeita de envolvimento em funcionários fantasmas no gabinete do vereador. Ana Cristina foi chefe de gabinete de Carlos entre 2001 e 2008.

O coronel Hudson também é investigado, no mesmo inquérito do senador Flávio Bolsonaro. O caso contra Flávio envolve ainda Queiroz e Márcia, que já chegaram a ser presos no ano passado. Familiares de Ana Cristina também são investigados, incluindo Andrea.

O MP-RJ indica que 10 integrantes da família foram assessores de Flávio Bolsonaro na Alerj (Assembleia Legislativa do Rio de Janeiro). O grupo teria sacado mais de R$ 4 milhões no período em que trabalharam no gabinete. O montante representa 83% de tudo que receberam como salário.

Com informações do Poder 360