Corre sangue novo pelas veias abertas da América Latina

Por Thiago Modenesi 

A América Latina tem uma história complexa, marcada por colonização majoritariamente espanhola e a nossa portuguesa, com independências construídas com muita luta e muito sangue, a exceção da brasileira, o que não quer dizer que o nosso povo não tenha tradição de lutas, podemos lembrar centenas de levantes populares como a Revolta da Chibata, Cabanagem, Sabinada, Balaiada, Fora Collor e por aí vai.

Fomos marcados nos anos 60 do século XX por ditaturas e por interferência dos Estados Unidos em vários países, em ataques aos governantes democraticamente constituídos e todo um processo de luta para reverter isso que levou décadas. Daí brotaram as democracias dos anos 80, ainda frágeis, apoiadas em novas constituições como no Brasil, ou tendo que carregar o fardo das velhas, como no Chile.

Essas democracias sentiram o peso do neoliberalismo, o desmonte dos Estados nacionais, as privatizações que prometiam dias melhores e tomavam nossas riquezas em leilões suspeitos. Os anos 2000 trouxeram um novo fôlego as ideias progressistas na América Latina, eleições de presidentes democráticos e de esquerda na Argentina, Paraguai, Uruguai, Brasil, Venezuela, Peru, Equador e Bolívia, apesar de uma derrota no Chile para a direita neoliberal. Mas o que marca esse momento é que a disputa se dava nos marcos democráticos, quando se ganhava e perdia o respeito era o fator majoritário.

Isso começa a mudar nos mesmos anos 2000, assistimos sem muita contestação o presidente Fernando Lugo, do Paraguai, e Manuel Zelaya, de Honduras, serem apeados do poder em golpes “constitucionais”. A título de curiosidade, Zelaya chegou a ficar refugiado na embaixada brasileira na época do governo Lula.

Ali se gestava uma nova política, a do golpe brando, reza a lenda que até livro sobre isso foi escrito por um ex-agente da CIA. Nada mais de armas, de derrubadas violentas de governantes com mortes, agora a ideia é se aproveitar das redes sociais, construir redes de boataria somada ao ódio de classe e derrubar governantes. Em certa medida também foi assim com Dilma no Brasil, partindo da não aceitação do resultado pelo tucano Aécio Neves começou-se uma novela longa que até hoje não chegou ao seu fim e vai deixando cadáveres (literalmente falando) e prejuízos a todo o Estado de Direito e democracia construída e reconstruída desde a Constituição de 1988.

A onda virou novamente, assistimos novas eleições de governantes neoliberais e de direita em quase todos esses países já citados, além de um golpe de Estado na Bolívia que arrancou a força do poder o presidente Evo Morales, passando este um largo período exilado no México. Aqui se insere a eleição de Bolsonaro no Brasil.

O balanço desses governos não agradou em linhas gerais os habitantes desses países e, a exceção do Brasil que só tem eleição em 2022, a onda parece virar mais uma vez, com uma nuance preocupante: os processos eleitorais passaram a serem muito mais questionados, com as redes sociais pressionando e pondo em dúvida resultados em vários desses pleitos.

O que tudo isso pode apontar? Que se inaugura um novo paradigma após a vitória expressiva de Alberto Fernández na Argentina, da derrota no golpe na Bolívia com a eleição de Luís Arce, candidato apoiado por Evo Morales e membro do seu partido, e prisão da senadora golpista que se auto intitulou presidente, e de uma vitória da direita no Uruguai, mas que procurou se afastar ao máximo dos extremistas como Bolsonaro, recusando inclusive seu apoio.
Isso também está representado pelos amplos movimentos no Chile que levarão a uma nova e necessária constituição no país, acompanhado do crescimento de pré-candidatos a presidência ligados a esquerda e ao Partido Comunista Chileno, do resultado conturbado no Equador que segue sendo questionado, em que André Arauz, candidato do ex-presidente de esquerda Rafael Correa, lidera e vai ao segundo turno com Guillermo Lasso, de extrema-direita, um segundo colocado profundamente questionado que acabou ficando com a vaga, mas há toda uma contenda social e política se desenrolando por parte do outro candidato de esquerda, Yaku Pérez que segue contestando em meio a recontagens intermináveis.

E, mais recentemente, o Peru, país de tradição conservadora que pode ter dois candidatos que se declaram de esquerda no segundo turno em abril. A situação dos peruanos não é simples, entre golpes e contragolpes internos chegaram a ter três presidentes em uma semana e estão há anos com seus governantes imersos em denúncias de corrupção, o pleito reúne quase 20 candidatos ao cargo e o que lidera mal ultrapassa os 10%, a grande maioria diz não saber em quem votar ou que não se sente representada por nenhum deles.

Ainda assim, em pesquisa de 16 de março do jornal El Comercio do Peru, chama a atenção Yonhy Lescano seguir liderando há semanas, consolidando a distância dos demais candidatos que seguem embolados. Lescano se apresenta como de esquerda, é do Ação Popular, partido que liderou as denúncias e movimentos que levaram a derrubada do então presidente Martín Vizcarra. Seriam todos esses fatos acima listados sinais dos novos tempos, de uma nova onda?

Se sim, há marcas aqui a serem consideradas e ressaltadas. Uma é que o eleitor desses países cansou do modelo neoliberal, dos arrochos, desemprego, retirada de direitos, carestia e tudo mais. Outra é que novos nomes parecem empolgar e ter mais chances eleitorais do que os antigos.

Vejam bem, o eleitor do Equador e da Bolívia confia em Rafael Correa e Evo Morales, respectivamente, mas se anima mais com novos nomes, apoiados e apresentados por esses. Parece clara a antipatia do eleitorado latino-americano por presidentes que ficam décadas no cargo, as democracias do tipo das que estão constituídas no continente pedem por formação de quadros para as dirigirem, que esses governos o façam, gerem novos políticos em condições de comandarem essas nações. Cristina Kirchner entendeu isso.

Depois de toda uma campanha difamatória e criminosa do judiciário argentino e do governo Macri contra ela, no mesmo estilo do que fizeram aqui com Lula, optou por ser vice de Alberto Fernández e não candidata a presidência mais uma vez, e lograram juntos uma acachapante vitória.

Será que tudo isso não registra algumas lições a serem colhidas na eleição brasileira vindoura? Comemora-se por aqui a anulação das condenações do ex-presidente Lula, algo que efetivamente todos os democratas devem fazê-lo, aquilo foi o resultado de uma milícia judiciaria, de uma deturpação do processo e rito legal, mas qual o real impacto dessa novidade na disputa que se avizinha?

Lula volta pro jogo, polariza com o presidente Bolsonaro. As pesquisas mostram um desgaste do eleitorado com as duas figuras, como os dois polos que representam, mas a evolução das mesmas também apresenta um aumento do desgaste de Bolsonaro e a diminuição da rejeição do petista. Levanta-se a questão se não seria um bom momento para seguir o exemplo de Cristina Kirchner, Rafael Correa e Evo Morales, ungindo um novo nome da esquerda, geracionalmente e politicamente falando? Nomes que poderiam cumprir essa missão não faltam no próprio PT, além de figurarem no PCdoB, PSOL e PDT também.

Inegável que o cenário é outro com Lula apto a ser candidato, a disputa ganha outra dimensão e nuances, mas agora é fundamental a busca da construção de uma ampla frente para tirar o Brasil na crise sanitária e econômica que o país está imerso. Essa frente necessariamente não é a mesma que disputará o pleito, mas pode ser a que bote o Brasil de volta nos trilhos da democracia, da economia e da saúde pública nesse ano de 2021.

Thiago Modenesi é Professor Universitário